Toda cozinha é cheia de chamas, vidros e cacos, fogo e objetos afiados. Líquidos ferventes, escorregadios materiais prontos para serem levados ao chão e atacarem você. Cozinhar é perigoso demais para permitir uma distração. Comer é perigoso demais para que uma vida esteja nas mãos de cozinheiros mal preparados.

E por isso digo, que se você pisar nessa área sem o respeito adequado, certamente irá se machucar, e não digo apenas fisicamente. O perigo se apodera do cozinheiro descuidado, e talvez seja essa ameaça oculta que atraia tantos corpos para a zona de perigo.

Mas ao mesmo tempo em que somos premiados com esbarrões, palavras grosseiras e sentimentos momentâneos de raiva, também somos presenteados com uma onda de prazeres infindáveis, tanto para quem come, quanto para quem cozinha.

O som da pancada da faca ao picar cogumelos roliços e suculentos, o vapor cheio de aroma que inunda os poros sensitivos de todo corpo, o açúcar queimando sob a chama tenaz de um maçarico, as miúdas esferas de baunilha enegrecendo uma massa potente de sorvete ou a delicadeza de uma lagosta servida com apenas um pouco de manteiga. Até mesmo o molho que puxa a colher engrossando na panela, ou o aroma de outono, primavera, verão ou inverno que emana de uma mistura de ervas, massas e gorduras faz o tempo parecer mais vagoroso na cozinha.

Quando o mundo lá fora parece tão sombrio, e um passo descuidado nos transporta para um precipício, é o momento de afundar-se em uma tábua proibida de madeira, mas que deixa o som do corte muito mais sedutor, e picar cebolas, misturar alhos e algumas pitadas de brilhantes e íntimos grãos de sal. Meu caso secreto com a cozinha vem de tempos, provavelmente quando passei a diferenciar o aroma de um bolo de bananas contra o reconfortante aroma de bolinhos de chuva nevoados com açúcar e canela, que faziam de minhas tardes de domingos, inesquecíveis lembranças em minha boca. Parece que hoje, lembrando-me das minhas desajeitadas pequenas mãos, que tentavam cozinhar para a família, enquanto minha criativa mente me imaginava uma grande chef conduzindo uma cozinha a passos de balé, ainda é possível sentir o sabor original daqueles bolinhos, que provavelmente nunca voltarei a sentir outra vez.

Uma refeição é muito mais evocativa que uma fotografia, uma receita às vezes esconde traços na caligrafia mal escrita de uma tia, parecendo não querer compartilhar seu segredo. Há um tempo atrás fui uma estudante de gastronomia com uma boa reputação de cozinheira, exatamente em uma época que descobrir o ponto correto de uma carne era tão complicado e acertar a minha pesada mão de sal era praticamente um sonho.

Provavelmente a maior das delícias em se cozinhar seja comprar ingredientes frescos em uma pequena vendinha de bairro, no qual o dono baixinho e de cabelos brancos, mas com um ar de simpatia centenária, guarde toda semana aquele ramo de salsinha fresquinho só para você, ou traga as últimas novidades de sua pequena plantação no interior de São Paulo – como um morango bem pequenino, de coloração sem graça, mas com uma grande força de sabor.

Talvez sejam essas as coisas que fazem da Gastronomia, Gastronomia! E talvez seja por isso que críticos e estudiosos de gastronomia continuam a percorrer e conversar sobre comida, para quem sabe, descobrir porque certas lembranças são feitas de sabores tão espetaculares.

Joyce Galvão,  é chef de cozinha e Engenheira de alimentos.  Professora, pesquisadora de gastronomia, palestrante e colunista do portal SP Jornal.