Confesso: amo ler e amo muito mais escrever. Leio tantos escritores, tantas coisas; até papel de bala. Eu me divirto com meus livros, que vão do 8 ao 80: vacilam em uma literatura que me recorda os tempos de escola, repleta de Clarice Lispector a uma filosofia de bordel como Bukowski, navegam entre contos cheios de comida, como os de Ruth Reichl, a ex editora chef da revista Gourmet, a contos mais maquiavélicos.

Foi assim que eu cheguei ao romance de estréia da Muriel Barbery, que apresento e indico a vocês na coluna desse mês. A morte do gourmet pode lembrar, só pelo título, algo como o longa metragem de 1978. Quem está matando os grandes chefs da Europa, mas longe disso.

A morte do gourmet não é um livro sobre gastronomia, mas sim um livro de heranças familiares gustativas. Lembra sim um pouco mais a história do facinoroso crítico que se derrete sob um prato que o evoca à sua infância, no desenho da Disney Ratatouille.

A estória acompanha dois planos que se entrelaçam, com uma trama genial. Um deles se concentra nos breves minutos antes da morte de um importante crítico de gastronomia e o  outro, nas memórias desse sujeito que se manifesta recolhendo passagens de sua vida gastronômica, na tentativa de lembrar-se de um sabor que marcou sua infância. Muriel subverte a máxima de Em busca do tempo perdido de Proust, e com o sabor de uma madeleine umedecida em uma xícara de chá o personagem da história precisa justificar tudo o que já foi vivido e recuperar o gosto de algo que representa toda uma vida.

A memória passeia por sabores como o gosto de sal no canto da boca, o lanche após o banho; a carne saboreada numa viagem em que as almôndegas, “grelhadas no respeito de sua firmeza”, enchiam a boca do carnívoro profissional.

A América idealizada em uma lanchonete com bancos de couro sintético vermelho, e até a simples lembrança de seu cachorro, posicionado estrategicamente onde uma salsicha esquecida na grelha poderia ser surrupiada renasce na mente do gourmet. Apesar da linguagem dura, que não permite a emoção, a trama prenderá sua atenção acerca do “valor e da verdade dos afetos gastronômicos”. E como diz o gourmet Pierre Arthens, “a perfeição é o retorno”. Até a próxima edição!

Joyce Galvão,  é chef de cozinha e Engenheira de alimentos.  Professora, pesquisadora de gastronomia, palestrante e colunista do portal SP Jornal.