Matar um porco em meados de novembro – nas festividades de San Martín, dando início ao inverno – é uma tradição na Espanha que vem sendo proibida e extinta com o passar dos anos. Apesar da proibição e de leis que protegem os animais, obrigando os criadores ao pedido de uma permissão para realizar a morte do porco em domicílio próprio, mais de 15000 porcos, só na região da Catalunya, veem sido mortos a facadas e golpes na cabeça – como rege a tradição.

O povoado fica a 15 minutos da cidade de Berga, próxima aos Pirineus. A matança, da qual participei, começaria às 6 horas da manhã e os grunhidos do porco que ecoavam nas montanhas, já poderiam ser ouvidos no meu coração a muitos quilômetros de distância.

A matança do porco se realizava – antigamente – no momento em que os agricultores tinham menos trabalho na lavoura se convertendo em uma reunião familiar, acompanhada por amigos e vizinhos. A chegada dos primeiros dias de inverno, com a Lua em quarto minguante era o momento ideal para matar o animal, que durante todos os meses anteriores havia sido engordado com esse objetivo. Do porco se aproveita tudo, “até mesmo seu andar”, como brincam os espanhóis.

Quando cheguei ao povoado fui acompanhada pelo crítico gastronômi­co e diretor da Fundação Alicia Toni Massanés e sua filha de 5 anos. Incrivel­mente, a menina loira e puramente catalana parecia se importar menos com o cheiro de morte e sangue do que eu – uma cozinheira com 1/4 de século.

A festa hoje em dia tornou-se algo puramente gastronômico, saber matar um porco e destrinchá-lo deve estar no currículo de qualquer cozinheiro que se preze, mas eu, dessa vez, preferi deixar passar. Enquanto todos arregaçavam as mangas e com seus facões ajudavam a cortar a carne em pequenos pedaços para serem fritos em óleo quente, eu preferi observar de longe essa festa – que apesar de parecer um pouco bruta com o animal – não deixou de ter sua curiosidade para uma cozinheira como eu.

Em uma grande mesa os homens colocavam cabeça, rabo e patas de um lado, enquanto no cômodo ao lado – em pleno ar livre, as mulheres separavam o sangue, lavavam as tripas e moíam a gordura e carne para a preparação da morcilla, uma linguiça típica espanhola, nada agradável para quem possui paladar preguiçoso.

A manhã toda se resumiu em beber vinho, conversar e observar adultos e crianças beliscando batatas fritas enquanto cortavam a carne do animal e duas simpáticas e gordas senhoras preparavam a morcilla com seus braços ensanguentados. A carne depois de limpa e bem separada corre direto para o óleo quente, com uma chama alimentada pela própria gordura do animal.

Ninguém me conhecia naquele local, mas a felicidade em realizar uma tradição na Catalunya, principalmente sobre os olhos curiosos de uma estrangeira, parece ter tornado toda a festa em algo muito maior do que aparentava. Fui a primeira a ser servida, e sob olhares curiosos, esperando a primeira garfada para que todos pudessem começar a grande festa, me vi obrigada a comer aquele pedaço negro, seco e carbonizado de carne de porco recém morto, cujo cérebro eu havia visto minutos atrás. Um copo bem cheio de vinho em uma mão, uma lasca bem grande de pão à minha frente e zás, porquinho para dentro.

Ouvi um aplauso caloroso e logo após o som dos talheres e copos chocando-se uns contra os outros. Olhei para todos os lados antes de beber o copo de vinho em um único gole e colocar a lasca toda de pão na minha boca. A morcilla? Bem, isso é papo para um próximo capítulo, mas já posso adiantar que sangue não é meu forte – isso porque meu paladar não chega a ser tão preguiço, talvez eu apenas não seja tão carnívora ou tradicionalista como gostaria.

Joyce Galvão,  é chef de cozinha e Engenheira de alimentos.  Professora, pesquisadora de gastronomia, palestrante e colunista do portal SP Jornal.